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Abril 26 2015

UM HOMEM EXTRAORDINÁRIO

Pela teologia católica, muito ensinada pelos nossos clérigos, especialmente pelos mais “conservadores”, ninguém é tão perfeito e tão isento de pecado que posse entrar no Céu, sem a purificação do Purgatório.

No entanto, temos o caso   do “bom ladrão”, que, ao lado de Jesus crucificado, ao se arrepender da sua vida criminosa e pedir perdão, recebeu o supremo consolo da grande promessa de, pouco tempo depois, entrar com o mesmo Cristo no Paraíso.

Haverá mais algum caso semelhante?   Nenhum daqueles “grandes   santos” e gloriosos mártires teve igual privilégio? Oficialmente, nada se sabe. Talvez São Paulo, pois esse foi arrebatado em êxtase ao Céu, onde lhe foi dado viver coisas inenarráveis e   emoções inefáveis.

Mas eu conheci um homem, meu vizinho, uma pessoa aparentemente insignificante que, eu acredito, também foi levado directamente para o Paraíso . São pensamentos e sentimentos pessoais quevou justificar.

Era o Sr. Gomes Ferreira, um homem de nome banalíssimo, que nada tinha de distinto de maneiras e de fidalguia de porte.   Quer no rosto, quer no vestuário, quer nas mãos e na própria voz, quer em toda a sua compleição, mostrava ser um homem sem fidalguias, sem ilustração social e sem graus académicos . No entanto, para quem com ele se relacionasse e bem observasse, tinha várias virtudes.

Era totalmente franco e sem hipocrisias, mesmo que tivesse de ser rude, como de-facto muitas vezes era. De certa vez, entrou no escritório do patrão da fábrica onde como capataz trabalhava, increpando-o violentamente, por causa de certa situação que ele tinha criado contra um dos seus subordinados. Arriscou-se a ser despedido, mas nada o deteve. Venceu, o patrão reconsiderou, a situação foi resolvida segundo a justiça do Sr. Gomes.

Outra característica deste Sr. Gomes era a sua devoção à Igreja, à Virgem, à oração e a alguns santos, poucos, de quem tão repetidamente lia a biografia que a sabia de cor. Aliás, as suas leituras reduziam-se a estas 3 ou 4 biografias   e aos 4 evangelhos que também sabia de cor , à força de tanto os ler. Nunca faltava a uma Missa de Domingo e, mesmo sem saber cantar, sempre cantava como sabia e à maneira dele. Era curioso estar a seu lado e ouvi-lo : muitos cânticos têm várias versões, mas ele só sabia uma, e era dessa maneira que ele cantava, fosse qual fosse a que o coro tivesse adoptado . Ele cantava, com a sua voz rouca e totalmente desafinada, mas com o maior à-vontade do mundo, indiferente a alguns olhares reprovadores. Rezava em casa todos os dias o Terço, e se alguém fosse lá a casa nessa hora, a filha atendia, mas recusava amavelmente a visita.

Ora, na paróquia foi fundada uma obra sócio-caritativa, de carácter profundamente religioso e ele foi um dos fundadores, ao lado de outros paroquianos. Foi no tempo da Segunda Grande Guerra, havia muita gente carenciada e muitas situações de miséria. Apesar de não ser pessoa altamente considerada, foi o principal obreiro da Obra, especialmente na angariação de fundos e de subscritores. A favor dos pobres, não se acanhava ou envergonhava de pedir, não se poupava a esforços, e quando alguém, mesmo que fosse um sacerdote, se lhe negava, lá prègava, às vezes sem qualquer delicadeza, um sermão baseado no Evangelho, sobre a Caridade e o serviço – “pàzadas de Evangelho”, como ele próprio dizia. Para ele a Bíblia era só o Evangelho, e o Evangelho era para ser cumprido à letra, não havia imagens ou sentidos figurados, hipérboles literárias ou linguagem apocalíptica.

Por isso, quando casou uma filha, não convidou vizinhos, amigos, nem nenhum senhor fulano de tal – os seus convidados foram os pobres, os assistidos pela instituição que ajudara a fundar e para a qual continuava a trabalhar. Era notável a sua dedicação aos pobres, concedendo-lhes o que precisavam, tanto quanto possível e estivesse ao seu alcance. Uma família de 3 ou 4 pessoas morava numa bouça, num casebre em condições indignas e sem conforto. Ligado à construção civil, com materiais que já tinha e com o que conseguiu na empresa em que trabalhava, remodelou quase sozinho a habitação daquela família para ela ter a dignidade e o conforto mínimo, devidos a seres humanos.

 

Como sucede com toda a gente, o sr. Gomes Ferreira foi envelhecendo e piorando dos seus males. Um dia foi para o hospital, mas o seu estado de saúde estava tão deteriorado que não

era de aconselhar a operação de ablação da perna que seria conveniente. A única coisa a fazer, era tratar de lhe proporcionar a breve trecho, uma morte o mais serena possível. Por esses dias da sua estada no hospital, o sr. Gomes Ferreira disse à filha e genro que o visitavam: Fiquem a saber que eu amanhã ao meio dia vou morrer.

Eles, pensando que o pai estivesse perturbado da cabeça a dizer coisas inconsequentes, limitaram-se a dizer : Oh! Pai! Não diga uma coisa dessas. Só Deus sabe, e ainda vai estar muito tempo junto de nós.

– Não, não!– disse o pai – Cristo apareceu-me e disse que me vinha buscar amanhã ao meio dia . Filha e genro nada disseram, mas ficaram a pensar que o pai estava de facto de cérebro muito perturbado.

A realidade, porém, foi que ao meio dia do dia seguinte ele se extinguiu serenamente.

É possível que este facto verídico possa ter várias interpretações ou conclusões. Cada qual poderá ter a que lhe parecer mais justa ou exacta. O leitor já sabe qual é a minha.

laurindo.barbosa@gmail.com

publicado por Fri-luso às 17:10

Laurentino Sabrosa
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