O HOMEM SANDWICH
O João Alberto era um dos muitos sem-abrigo que vivia numa grande cidade, vida para a qual foi arrastado por insânia, por má fortuna, talvez e também por “amor ardente” a alguém, miscelânea que tendo começado por um grande atraso cultural, culminou numa grande indolência. Apesar disso, um dia, começou a ficar saturado daquela vida sórdida e mesquinha, e começou a dar tratos à cabeça como seria possível sair dela. Ele gostaria de trabalhar. Mas, agora, quem o aceitaria? Mais por pessimismo que por inteligência, reconhecia que não tinha instrução, tinha passado a não ter robustez para trabalhos pesados, e, olhando por si abaixo, viu bem que nem sequer tinha roupa que lhe permitisse ir oferecer-se a um centro de emprego. Havia muito tempo que não se via a um espelho, mas se reparasse na imagem que de si lhe davam algumas montras ou vidraças por onde de vez em quando passava, ainda mais esmagado se sentiria. Na verdade, barba hirsuta, face magra e esquálida, não o recomendavam para nada nem a ninguém, infundindo, mesmo, receios ou suspeitas. De pensamento em pensamento, acabou por concluir que nem sequer para pedir tinha habilidade. Vivia muito alheio ao mundo circundante, mas tinha ouvido dizer, uma vez por outra, que os mendigos, grande parte deles se não todos, viviam bem, e se continuavam na pedinchice já não era por necessidade, mas porque era rendoso. Mas ele, não! Já em tempos tinha tentado, mas sem qualquer resultado animador, porque sempre se embaraçava e retraía. Todos se afastavam! Todas as portas fechadas!
Enquanto cogitava, um dia, encontrou casualmente um comparsa de vida, homem que lhe tinha dito ser conhecido por Chico da Eira. Tinha desaparecido havia bastante tempo, mas eis que voltava, não feito fidalgo mas de melhor aspecto, mais corado e mais nutrido.
À pergunta espantada de João Alberto, ele respondeu com um sorriso, parecendo muito satisfeito:
– Ora, estive preso! Vi um homem sair do Banco e meter à pressa uma carteira com dinheiro no bolso de trás das calças. Pareceu-me fácil roubar-lhe a carteira. Mas por azar meu não foi, o homem não ia tão preocupado e distraído como me pareceu, deu por ela, agrediu-me e eu defendi-me, armou-se burburinho, fui logo preso por roubo e agressão. E foram seis meses para cima do lombo!
–Parece que te fizeram bem – disse o Alberto – a tua cara está mais cheia e o lombo maior!
– Parece que sim.
– E então que vais agora fazer?
– Sei lá! Nada! Peço aqui, peço acolá, vou à sopa dos pobres, até um dia, quando for para o hospital, para a morgue, o que calhar…
– Ou para a cadeia – disse a rir-se o Alberto.
– Sei lá! Talvez… talvez… o diabo não é tão feio como o pintam – respondeu o Chico, que se afastou sem mais conversas, parecendo querer mostrar que, apesar de tudo, preferia a sua vida de vadiagem.
O João Alberto continuou a matutar. Nunca lhe tinha passado pela cabeça a ideia de roubar. E se ele fizesse o mesmo? Não! porque… um dia, deu um involuntário encontrão num transeunte, e este, olhando para ele, disse: ó porcalhão, há por aí balneários, porcalhão! e vê lá se tens cuidado a andar na rua! Outro transeunte que passava muito perto e ouviu o primeiro, disse-lhe por sua vez: olhe que vale mais ser porcalhão que ladrão! O outro ouviu e não retrucou, principalmente porque viu que aquilo era uma alusão a ele ser reconhecido como carteirista. No dia seguinte, João Alberto casualmente encontrou o seu defensor, que o informou disso mesmo, e, então, até se sentiu superior. Ser ladrão? Nunca! Já tinha verificado que não tinha habilidade para pedir. Ficou a pensar que nem sequer podia pensar em roubar. Nada feito, nenhuma saída, a não ser continuar na sua vida de agora, esperando a ida “para o hospital, para a morgue, o que calhar”… conforme tinha dito o Chico da Eira.
Mas enganou-se. Em certo fim de tarde, em que ele deambulava a vasculhar o lixo do dia, à procura de alguma coisa para comer ou, pelo menos, umas pontas de cigarro e cartões ou jornais para lhe servirem de lençóis e cobertores, alguém se acercou dele e lhe disse:
– Preciso de falar consigo.
João Alberto ficou alvoroçado. Quem era o homem? Que queria ele? Ficou mesmo assustado, talvez mais do que ficaria um cidadão da “gente fina” se fosse ele, João, a ter, junto desse cidadão, aquela iniciativa.
Mas o tal não se apercebeu ou fingiu não ver o constrangimento dele, e continuou:
– Quer trabalhar para mim? Preciso de si para ser o meu “homem-sandwich”.
– Homem quê?! Que é isso?
– Quero que você ande pelas ruas da cidade com dois cartazes de anúncios, um pendente do peito e outro das costas, seguros nos ombros. Tenho uma casa de penhores, compro e vendo relógios, ouro e joias, e quero fazer publicidade. Não é preciso sabedoria. Anda, anda pela cidade nas ruas mais movimentadas, quando estiver cansado descansa a sentar-se em qualquer lado, só com a preocupação de ter sempre os cartazes bem visíveis. Ora veja bem – concluiu o empresário a querer convencer e a amenizar o assunto – é um serviço tão fácil que mesmo quando está a descansar está a trabalhar!
– E quanto me paga por isso?
– Dou-lhe dez euros por dia, de Segunda a Sábado.
– SÓóóó?!!
– Acha pouco? Você anda por aí ao Deus dará sem ganhar nenhum! Mas olhe, se quiser trabalhar também ao Domingo, dou-lhe por cada Domingo vinte euros. E além disso vamos aqui combinar uma coisa. Tenho nas traseiras da minha casa um quarto jeitoso para si. Enquanto estiver ao meu serviço, vai lá pousar os cartazes e fica no quarto. E além disso, convém você melhorar um pouco essa cara e essa roupa. Vai ter um bom lavatório, e também lhe posso dar um fato, calças e casaco, que está por lá arrumado. Você é da minha altura, e de certeza que lhe serve. Então, ainda quer mais?
O João Alberto ficou por momentos indeciso, mas conseguiu lobrigar a mudança de vida em que tinha vindo a pensar. Pessimista, pelas muitas privações e desenganos que já tinha sofrido, aceitou sem entusiasmo a proposta que lhe faziam. Até achou melhor não retrucar a respeito do peso dos cartazes, porque, rápido em deduções como raras vezes teria sido, pensou: se eu não aguentar o serviço, desisto e se não ganho também não trabalho - fico a lucrar o fato; o homem não me vai mandar para a morgue por causa disso, e se me puser na cadeia a coisa não é assim tão má, o Chico da Eira teve sorte em ter estado preso aquele tempo todo.
Dois dias depois, era o primeiro dia de trabalho como “homem-sandwich”. Lá andava ele de cartazes publicitários, um pouco melhorado em todo o seu aspecto. Desde logo teve a satisfação de verificar que aguentava bem o peso dos cartazes. Não eram tabiques de madeira pesados como imaginara, mas cartões duros e consistentes, devidamente escrevinhados. O patrão estava a ser amigo, deu-lhe uns cigarros, e até lhe disse que se chovesse, se abrigasse em qualquer sítio. Mas nunca choveu, e Alberto chegava ao fim do seu dia cansado mas satisfeito. Comia melhor do que lhe era habitual, fumava com maior prazer e de vez em quando permitia-se o luxo de um copito de vinho e um café.
Ao fim de dois meses, o patrão deu por finda a sua campanha publicitária. Prometeu que no próximo Verão …talvez …talvez eu o chame outra vez, creio que não tem razão de queixa e então nessa altura conversamos.
Logo a seguir, Alberto regressou ao seu habitat, à sua anterior rotina de “sem abrigo”, e depressa ficou sujo de cara, de unhas e de mãos. Ninguém mais lhe deu trabalho e, enquanto não ficou sujo de roupa, o Chico da Eira e dois ou três compinchas mais conhecidos, olhavam-no de soslaio e com sorrisos trocistas. Voltou a ter fome, voltou a vasculhar ao fim do dia o lixo da cidade. Num desses dias, às sete horas da tarde, hora de encerramento de quase todos os estabelecimentos comerciais, o Alberto, remexendo o lixo dos recipientes, reparou que estava muito perto de uma grande joalharia da firma MACHADO & MOUTAS, LDª. Enquanto foi “homem-sandwich” ia comer uma sopa e pouco mais a uma tasca e, casualmente, perto de si, esteve de certa vez alguém que se referiu ao sr. Jorge Machado homem muito rico, na prática o único proprietário, na Rua da Bemposta, de um grande estabelecimento de joalharia, relojoaria, e outro, portas pegadas, de óculos e instrumentos de precisão, patrão de mais de trinta empregados. Como se isso fosse pouco, havia junto destes estabelecimentos uma grande farmácia, com gerência e propriedade de um seu filho. A conversa não era nada com ele, mas o Alberto ouviu quase tudo, compreendeu quase tudo, e até ficou a saber que o tal Sr. Jorge era pessoa muito considerada na cidade e dava generosos donativos a várias instituições de benemerência e de projecção social. Ora, naquele dia, Alberto ainda não tinha ingerido nada a calar o estômago, e no dia anterior tinha sido quase a mesma coisa. Num impulso, venceu o acanhamento que normalmente sentia no momento de pedir, e dirigiu-se ao Sr. Jorge Machado, que estava a fechar as suas contas enquanto três empregados estavam na tarefa de encerrar os estabelecimentos.
Quando os empregados viram o Alberto entrar pelas portas adentro, logo suspenderam o serviço e ladearam o patrão como que a querer defendê-lo. Por sua vez, este ficou alarmado e logo vociferou a brandir o machado do seu nome.
– Que quer você daqui !!
– Desculpe, Sr. Jorge, eu ainda não comi nada hoje, tenho andado a matar a fome com copos de água. Agradecia me desse alguma coisa para eu ir comer uma sopa.
– Estou cheio de ouvir essa cantilena! Vá mas é trabalhar!
– E o senhor me arranja? Ainda não há muito tempo trabalhei para um penhorista, mas o serviço acabou e…
– Para um penhorista? Vê-se logo que está a mentir! Pode lá ser! Esses tipos são uns cretinos e uns agiotas!
– É verdade, Sr. Jorge! Sabe, até por ter trabalhado para ele dois meses, perdi por agora o direito à sopa dos pobres. Foram dizer à directora da cantina que eu já trabalhava, que já vivia bem, que ganhava muito, e desarriscaram o meu nome, porque eu enquanto ganhei algum não apareci. Agora a tal directora está de férias, e quem lá está diz que não me pode resolver nada enquanto ela não vier. É por isso que não tenho comido quase nada e ando cheio de fome. Por favor…
– É…é …eu vou mesmo averiguar isso! – voltou a interromper o Sr. Jorge Machado – Olhe, vá-se embora que não há nada para ninguém.
– Oh, Sr. Jorge! – disse o Alberto pungentemente – o senhor não me quer dar nada para uma sopa?, o senhor, um homem que costuma ser tão bolsa aberta para várias obras!!
– Como sabe disso?! Olha…olha!… agora deu-lhe para a engraixice! Ora vá-se lá embora! Se você tivesse asas, eu dava-lhe uns litros de gasolina para voar bem depressa daqui!
João Alberto não teve outro remédio. Retirou-se cabisbaixo. Não se sabe no que ficou a pensar, só se sabe que a violência da decepção e da afronta lhe fez deixar de ter fome por algum tempo.
Algumas horas depois, já bem de madrugada, um enorme estrondo ecoou na Rua da Bemposta – alguém tinha atirado contra a vidraça da farmácia um pesado bloco de pedra, paralelepípedo que por perto estava nas obras inacabadas da estrada. Eram muito poucos os transeuntes, mas não foi difícil apanhar o meliante daquela proeza, que pouco parecia querer fugir. A Polícia foi célere a chegar e logo o prendeu – era o João Alberto, que, uma vez preso, não ofereceu qualquer resistência.
– Homem! Que raio de coisa fez você? Que queria você da farmácia?
– Nada!
– Nada?! Você é maluco ou quê? Não vê que desgraça a sua vida?
– Talvez não. Não quero roubar ninguém. Tenho fome. Só quero que me tirem a fome.
O polícia não percebeu nada.
– Mas que diabo de ideia foi essa de assaltar uma farmácia a uma hora em que havia ainda gente a circular, e começar logo a fugir?
– Escolhi essa farmácia por saber que para os donos o prejuízo pouco ou nada conta.
O polícia continuou a não perceber nada.
Dormiu nos calabouços da Polícia e foi julgado por uma juíza, mulher relativamente jovem, que também não percebeu nada, vendo nele apenas um meliante que por vingança estourou uma montra. Aplicou-lhe dez meses em cima do lombo.
Quando na cadeia deixou de ter fome e lhe deram um catre com cobertores para dormir, compreendeu porque o Chico da Eira tinha ficado mais corado e nutrido. João Alberto sorriu de satisfação. Relembrou o encontro com o Sr. Jorge Machado, mas já não sentiu o novelo de angústia que a conversa lhe tinha causado. Pelo contrário, sentiu-se sereno e até feliz. O seu golpe tinha dado o resultado pretendido. Mas o melhor de tudo, era que tinha descoberto um novo ciclo de vida. Ele há tantos rebos e de todos os tamanhos, ele há tantas montras e de bons estabelecimentos!...
30 de Set.2014
laurindo.barbosa@gmail.com