A MINHA NOVA ORDEM SOCIO-ECONÓMICA
Conheci um homem, o Sr. A. Mendes, que tinha um filho que desde cedo manifestou vocação de ser arquitecto. O homem, de profissão modesta, tinha poucos recursos, mas, apesar disso, não desistiu de proporcionar ao filho o curso dos seus sonhos. Vivia cravado de dívidas exactamente porque, não podendo faltar ao pagamento das despesas do estudo, faltava ao pagamento de muitas despesas do dia-a-dia: senhorio, merceeiro, talho, onde pudesse e lhe fosse possível. Por isso, andava, por vezes, de terra em terra a fugir aos credores.
Conversando com ele, descobri, sem ele próprio querer justificar-se do que eu já sabia, que não se sentia culpado ou amesquinhado pela sua conduta de vida, pois tinha elaborado uma filosofia muito especial: a) o filho dele tinha um ideal profissional e tinha capacidades intelectuais para o conseguir; b) se ele, seu pai, não tinha possibilidades económicas, o Estado tinha obrigação plena de as facultar; c) se o Estado não cumpria essa obrigação, então, teria de haver uma entidade que supletivamente arcasse com responsabilidade que o Estado não assumia; d) na estrutura económica e social vigente, a única entidade que, face à negligência ou debilidade do Estado, tinha de assumir a formatura do seu filho, era a Sociedade, a Sociedade em geral. De que maneira? Não pagando à Sociedade o que em Sociedade e para progresso da Sociedade se sentia obrigado a gastar. O homem não se mostrou egoísta. Esta teoria era válida para filho de qualquer pai, embora, se praticada por todos os pais que disso necessitassem, degenerasse numa luta infrene de salve-se quem puder num verdadeiro caos social.
No entanto, a teoria não é tão abstrusa como pode parecer. Roubar pão para matar a fome e só para matar a fome, não é crime, embora social e juridicamente o seja. Se aquele homem impunha à Sociedade apenas o financiamento das despesas estritamente necessárias para a formação do filho, estava, então, a “roubar só para matar a fome”. Como o homem deve ter sofrido por ninguém lhe reconhecer o que para ele não passava de um direito de solidariedade social! Como é lamentável que haja tão poucos poetas que enalteçam o amor de Pai! Morreu há muitos anos. Deve ter um ligar proeminente no Céu! Dizia D. Francisco Manuel de Melo que “para desprezar o mundo, bem basta os homens terem de ser julgados pelos homens”; eu poderei acrescentar que “para desprezar o mundo bem basta que se todos os homens reclamassem todos os seus direitos, seria o caos onde deixaria de haver direitos”.
Face ao que o Sr. Mendes pensava com alguma justiça, e para lhe dar satisfação legal, eu elaborei uma teoria revolucionária que resolveria milhões de problemas.
Ora vejam bem! Hoje em dia parece que toda a gente deve dinheiro a toda a gente, ninguém paga a ninguém: é as empresas que devem dinheiro ao Estado, é o Estado a dever dinheiro às empresas, é os hospitais a deverem dinheiro às farmacêuticas, é as Câmaras a dever dinheiro aos empreiteiros, é as empresas falidas e não falidas a deverem dinheiro aos trabalhadores, é os contribuintes (eu não!!) a deverem dinheiro ao Fisco, é, enfim, um pandemónio de dívidas e uma vergonha social de que todos se queixam, e que atrozmente afligiriam Adam Smith e David Ricardo, tão empenhados que estiveram em contribuir para a prosperidade das nações e no seu equilíbrio financeiro. Tirei um curso de características financeiras e económicas, mas bem posso rasgar o diploma, porque tudo está, não propriamente ultrapassado, mas ignaramente subvertido.
Parece que A. Smith e D. Ricardo, afinal de contas, não tinham razão, e a prova disso é que…vamos vivendo!...cantando e rindo, ainda que seja só para não chorar!...O pior é que ninguém me pede a minha opinião, pois eu saberia consertar tudo e acabar com as queixas e todo o desconforto da situação actual. Pois é! Se muitos não pagam a quem devem, e quem deve também tem quem lhe deva, está dada a ideia e o primeiro passo: acabe-se com o dinheiro! Dinheiro para quê? Eu quero um fato, vou à loja e pego num e não pago, porque não é preciso, porque o homem do armazém dos fatos também não os pagou, porque não é preciso: a fábrica que os confeccionou não pagou nada nem pelo tecido nem aos operários, porque não é preciso – estes tinham alimentação sem pagar aos lavradores, os lavradores tinham sementes e alfaias sem pagar, e quem lhas forneceu não precisava de receber qualquer pagamento, porque recebeu e deu tudo numa economia colectiva de solidariedade social. Se eu quiser um remédio não preciso dar dinheiro (coisa que deixou de existir), porque a farmácia não pagou ao laboratório produtor: este não pagou os “venenos” que meteu nos comprimidos, não pagou transporte, quem fez o transporte não pagou o combustível, quem lhe deu o combustível também não o tinha pago, nem aos empregados, e assim sucessivamente numa vasta e harmoniosa câmara de compensação.
Se aqueles génios do século XVIII, em vez de elaborarem teorias que vieram a ficar obsoletas, tivessem perfilhado esta teoria, melhorando-a quanto baste, tinham caído no goto da modernidade do século XX e XXI, para além de ter o grande agradecimento do Sr. Alberto Mendes. Se eu fosse mais novo, ainda me abalançava a ser eu o grande iluminado da nova ordem social, económica e financeira. Não sei se A. Smith e D. Ricardo têm estátuas em sua honra, que hoje serão consideradas imerecidas. Mas eu teria a minha estátua, honrada por toda a eternidade. Já que até agora nunca tive protagonismos e glórias, não estou interessado em glórias póstumas, e, além disso, receio que os deputados e governantes de agora, tão rasteiros em tudo, tenham dificuldade em compreender e executar. Prefiro manter-me ignorado, até porque, acima de tudo, é a minha vingança por ninguém pedir a minha opinião!!...