UMA HISTÓRIA E ALGUMAS ILAÇÕES
Há bastante tempo numa praça do Porto sucedeu um episódio muito interessante.
Um senhor que conduzia um belo Mercedes, quis estacionar num lugar que viu estar vago. Começou a fazer a devida manobra, mas quando estava a recuar para ocupar o lugar que pretendia, viu que esse lugar já estava ocupado por um mini, que com muito mais facilidade e rapidez de manobra, por meio minuto de avanço lhe roubou o lugar. Foi claro que o mini, chegado quase ao mesmo tempo que o Mercedes, também viu o lugar vago e valeu-se da sua maior mobilidade para o ocupar primeiro.
O senhor do Mercedes, saiu imediatamente do seu carro e dirigiu-se serenamente ao do mini.
- Então como é ? O senhor não viu que eu cheguei primeiro e que estava a manobrar para estacionar? Com que direito é que o senhor me veio roubar o lugar?
O outro sorridente e triunfante, respondeu
- Ó meu caro senhor, este é mundo é dos espertos!
O dono do Mercedes depois de alguns segundos de silêncio, disse-lhe:
- Ai é? Então espere aí mais um bocado.
Reentrou no seu carro e começou a fazer uma manobra esquisita; acabou por ficar bem em frente do mini estacionado, e de repente fez marcha atrás para embater violentamente com as suas traseiras na frente do mini – resultado: ambos os carros ficaram amassados, o Mercedes nas traseiras, o mini muitíssimo pior na parte da frente.
Foi pasmo geral e o dono Mercedes voltou a sair do carro e dirigiu-se outra vez ao dono do mini:
- Olhe, meu caro senhor, eu, na minha garagem, tenho mais dois Mercedes iguais a este. Fica a saber que se este mundo é dos espertos, não é dos pelintras! Vá queixar-se a quem quiser.
Dito isto zarpou imediatamente, sem que ninguém com o pasmo tivesse tido a ideia ou a possibilidade de tomar nota da matrícula. A traseira ficara amolgada e a chapa de matrícula estaria bem distorcida.
Durante muito tempo ouvi isto como “estória”, mesmo anedota, mas acabei por encontrar alguém, que se fosse vivo teria quase 100 anos e que me assegurou ter sido verídico. Tenho ideia de que situou o facto na Praça da Liberdade, muito perto do Banco de Portugal. Naquela época havia ali espaço de estacionamentos e na Avenida, um pouco mais acima, havia praça de táxis.
Comentemos. Quanto a mim, ambos os protagonistas tiveram um procedimento censurável. O homem do mini foi insolente e atrevido em aproveitar-se da sua facilidade de manobra para ter o prazer de roubar o espaço disponível, prazer muito provavelmente associado à inveja contra aquele carro de luxo. Já que não lhe era superior no principal quis “vingar-se”, mostrando ser superior no secundário. A resposta insolente e malcriada que deu, reflete isso mesmo.
Por outro lado, o dono do Mercedes valeu-se da sua riqueza para impor com alguma violência a sua supremacia económica. Quis castigar a insolência do outro, infligindo-lhe, pelo menos provisoriamente, um grande prejuízo. Não se sabe qual foi a extensão desse prejuízo, mas mesmo que tenha conseguido ser completamente ressarcido, pois para o capitalista não fazia a mínima diferença pagar-lhe mesmo um carro novo, quantos contratempos e atrasos de vida teve de sofrer! Realmente, ficou a saber que este mundo não é dos pelintras! Foi castigado, tal como quis o dono do Mercedes.
Mas…será que alguém tem direito a castigar alguém, pelo seu arbítrio, pelo seu poder pessoal? Só as autoridades constituídas, através das suas polícias e dos seus tribunais o podem fazer, e, mesmo isso, não por castigo mas para benefício do prevaricador. A não ser nos casos extremos em que o indivíduo já mostrou ser um celerado bem comprovadamente irrecuperável para a vida social, as próprias cadeias não deviam ser lugar de castigo, mas de recuperação moral e social do criminoso, um lugar em que devidamente acompanhado e mais ou menos a sós, ele medite no mal que fez aos outros e a si próprio, levando-o ao arrependimento. A prisão domiciliária é menos “castigo” mas mais “recuperação”, serena e firme, e isso é o que verdadeiramente importa.
Para os verdadeiros criminosos, alguns dos quais já com o estigma do crime estampado no rosto, a cadeia passa a ser um enjaulamento, como quem quer preservar a sociedade de uma fera. É bom que essa característica não se estenda à generalidade.