AUTORES

Agosto 08 2012

 

Laurentino Sabrosa

 

PENSAMENTOS

 

65 - “Lástima” é compatível com “piedade”? Numa análise superficial, piedade é muito diferente e não aceita a lástima, por esta ser pejorativa e conter muita censura. Os meus exames radiológicos pulmonares têm revelado “exiguidade das dimensões cardíacas”. Ora, conjugando esta informação com certos episódios da minha vida, eu chego à conclusão de que este meu coração tem sido um coraçãozinho, talvez todo o meu ser, tolo e pequenino, merecedor de lástima e de piedade. Deus queira que, um dia, perante Ele, não mereça só lástima.

 

66 - Cristo mandou perdoar setenta vezes sete, ou seja um número ilimitado de vezes. Mas… eu penso que até nisto há um “mas”.

No preceito de Cristo subentende-se que perdoar é uma questão de misericórdia, de fraternidade, de bom coração. Há, porém, situações ou casos – não serão muitos, mas alguns – em que para perdoar é preciso, já não ter bom coração, mas ter estômago! Nestes casos – com franqueza! – eu duvido um pouco que Cristo nos perdoe se nós perdoarmos.

 

67 - Uma vez dizem-nos, ou sentimos, que a vida é complicada. Outras vezes dizem-nos, ou sentimos, que, afinal, a vida é muito simples. Umas vezes a vida é de facto simples, mas nós com as nossas inépcias ou pessimismo, complicamos tudo; outras vezes a vida é mesmo coisa muito séria e complicada, mas nós com optimismo exagerado ou cálculos errados, simplificamos demasiado.

Daqui resulta que a vida é sempre complicada, porque discernir quando é complicada ou simples é sempre assunto complicado. Mas para o filósofo, para o matemático, para o poeta, para quem ama, pensa e sofre, a vida não é propriamente simples nem complicada – é transcendente. O que é uma certa forma de ser complicada.

 

68 - Creio que é de Bossuet a seguinte frase: “Avant, donc, que d’écrire, apprenez à penser” – “antes de quereres ser escritor, aprende a pensar”. É o que eu faço desde sempre. Antes de escrever qualquer coisa, já ela me saiu bem digerida como se tivesse passado pelo folhoso de qualquer ruminante. Assim, adapto o dito de Bossuet aos professores de Moral e de Filosofia: “antes de serdes Professores de Moral, aprendei a ser como ides ensinar”; “antes de serdes Professores de Filosofia, aprendei a serdes mesmo filósofos.”

Ser professor de Moral sem essa aprendizagem prévia, é desonestidade moral; ser professor de Filosofia sem ser verdadeiramente filósofo é, pelo menos, desonestidade intelectual. É como certos padres que dizem missa mas não vão à missa.

 

69 – Os detractores do catolicismo, especialmente os mais ignorantes, dizem-nos por vezes que missa, confissão, etc. são invenções dos padres. E se fossem? Para além de não ser verdade, há que considerar que essa “invenção” não foi feita em grande gáudio à mesa de um café ou como sobremesa de um opíparo jantar, ou ainda para encher a pança de uns tantos. Teria sido uma “invenção”, inventada por se ter concluído que era o que melhor convinha para a boa administração da casa de Deus no mundo. A assistência do Espírito não se verifica só na definição dos dogmas: verifica-se sempre no que é preciso para a consecução da vontade de Deus – ao fim e ao cabo, em tudo e em todos que a desejem.

 

70 - Segundo um conceito de Picasso “a Arte é uma grande mentira” Será? Eu penso que a Arte é qualquer coisa que de etéreo e espiritual que nos rodeia à maneira das ondas hertzianas e que cada qual capta à sua maneira. Então, a Arte é Verdade, é uma forma de verdade, e a mentira só pode residir no Homem que capta só meias-verdades com as suas meias-tintas. O que eu diria no lugar de Picasso, é que a mentira não está na Arte, mas na maneira como o Homem a pratica, maneira muito imperfeita que em si própria é a busca da Verdade, cheia de incertezas e de ânsias de a encontrar.

 

71 - Há uma maneira simultaneamente inteligente e santa de comemorarmos o nosso aniversário. Inteligente, se considerarmos que envelhecer não é tragédia, e tivermos orgulho perante toda a gente de sermos macróbios, sem termos dado um nó cego no fio das nossas ideias; santa, se não formos para ninguém importunos micróbios e todos virem que, apesar de tonturas e tremuras, caminhamos no caminho da perfeição.

 

72 - “Sede perfeitos conforme vosso Pai do Céu é perfeito”. É um preceito-dever que Cristo nos impôs, mas para o que devemos estar preparados para as consequências. Quando tivermos atingido não a plenitude mas um certo grau desse aperfeiçoamento, pela inteligência e pelo coração, muitos nos censurarão e não nos aceitarão, por não nos compreenderem, e muitos deixarão de nos amar, exactamente por não nos encontrarem defeitos.

 

73 - Honrar pai e mãe e amar o próximo, são preceitos bíblicos. E se for possível cumprir os dois simultaneamente?

O director de uma grande instituição de beneficência e de acolhimento de idosos e doentes, um dia entendeu por bem internar lá os seus avós. No dia da entrada, ele apresentou-os à comunidade e disse mais ou menos e em resumo: os meus avós vêm para aqui mas não pensem que vão ter privilégios: são como vocês todos, com os mesmos direitos mas também com os mesmos deveres. E assim foi. Parece que todos ficaram satisfeitos com aquelas palavras, por aparentemente mostrarem uma atitude de isenção e de rectidão. De facto, não seria muito agradável para os outros, verem que os avós do director tinham um estatuto melhorado. Mas eu, se fizesse parte da comunidade, não ficaria assim tão satisfeito. O que no meu pensamento o tal director devia dizer, que era o que eu, no lugar dele, faria (acho eu agora), era dizer, mais ou menos e em resumo: os meus avós vêm para aqui, e se até agora eu tenho feito o que me tem sido possível a bem de todos, eu daqui em diante vou procurar melhorar mais toda a vivência desta instituição para que os meus avós não sintam diferença para pior e todos vós sintais diferença para melhor. E assim seria. Ou então não dizia nada, mesmo nada, mas procurava agir segundo este pensamento, o que não se verificou apesar de na instituição haver deficiências a corrigir. Seria uma óptima maneira de simultaneamente “honrar pai e mãe” e mostrar amor ao próximo.   

 

74 - Há feridas que surgem espontaneamente, sem gravidade, mas que, mesmo tratadas e desinfectadas, nunca saram de vez. Porém, no último minuto ou mesmo no último segundo de vida do paciente, ela fecha e cicatriza impecavelmente, como que a fugir de um habitat indesejável.

Nada sucede por acaso, tudo sucede na hora certa, tudo tem um significado. E então, perante os acidentes da vida, eu sempre procuro o porquê do que sucede, a razão de ter sucedido naquela hora e o seu significado, material ou espiritual, qual o impacto a guardar na inteligência ou no coração.

É uma via dolorosa a percorrer, uma luta de esgrima com forças invisíveis e misteriosas que parecem quase sempre pouco benfazejas: abre-se uma ferida que sempre pretendo curar com pensamentos e atitudes, às vezes balsamo que parcialmente cura, outras vezes cautério que com alguma gravidade irrita. E lá continuo eu a procurar a razão do que sucedeu, porquê com aquela coisa ou pessoa, porquê naquela hora e não noutra, que devo pensar ou como devo agir. E lá continua a ferida aberta, que apesar de tratada e desinfectada nunca sara de vez. Porém – eu já sei – no último minuto ou mesmo no último segundo de vida, ela vai fechar e cicatrizar impecavelmente, delicadamente, não como que a fugir de um habitat indesejável, mas para me acompanhar e me servir de símbolo de entrada na vida eterna. E eu virei a confirmar que nada sucedeu por acaso, que tudo sucedeu na hora certa, e ficarei a saber que tudo foi necessário para Deus poder construir em mim o que era necessário para a minha salvação.  

 

75 - “Quem dá o que não presta, suja quatro mãos”. “Quem fala mal, sua boca suja” Estes pensamento são meus? Não são, são de minha mãe e de meu avô, seu pai. Mas, pelo respeito e veneração das pessoas de quem eles são, pela sua beleza e realidade, entranharam-se tão intensamente no meu espírito que se me tornaram soro medular que me irriga a massa encefálica. E então, eu passei a ser eles e eles passaram a ser eu - my own!

 

76 - Uma grande missão dos velhos é ensinarem à juventude num instante e de graça aquilo que lhes demorou muito tempo e, porventura, lhes custou muito dinheiro para aprenderem. Um velho que cumpre esta sua missão nunca terá de se lamentar. Um jovem que não acolhe um velho nesta sua missão, terá sempre de se lamentar: “Ah! Se eu soubesse, ah! Se eu pudesse!”

 

 

     77 - Em todos os textos de formação espiritual se diz que devemos ser amáveis, fraternos, amorosos, pois na medida em que semearmos receberemos. Será? Globalmente, sim, pontualmente não, e grande parte das decepções, frustrações e desgostos resultam disso. Que bom que seria se cada amabilidade fosse paga com outra amabilidade! Que bom que seria se não houvesse amores não retribuídos! Quantas vezes sucede que aqueles que mais nos devem em atenções e favores são exactamente os que até nos desprezam!  

Quando medito nisto, muitas vezes me lembro duma banda desenhada de antigamente: o Ferdinand viu em algures o reclame de certo perfume que fazia atrair aos homens todas as mulheres e via-se, mesmo, na gravura desse reclame, duas ou três mulheres a acariciar um homem que o tinha comprado. Ferdinand ficou entusiasmadíssimo, e vai daí, comprou também o tal perfume. A seguir, veio a sua grande decepção: num autocarro cheio de mulheres, nenhuma delas se acercou dele a acaricia-lo conforme faziam as da gravura do anúncio. O Ferdinand estava convencido de que uma boa acção tem, neste mundo e sempre, a sua recompensa e não sabia que os nossos perfumes há mesmo muitos que não os apreciam.

Eu sei bem disso, mas mesmo assim, na minha vida tenho muitas vezes ficado tão nesciamente desapontado como o Ferdinand. Quando semearmos cem pérolas, o mais provável é colhermos apenas uma entre os noventa e nove abrolhos que desabrocharam. Humanamente, aquela pérola deve desvalorizar os abrolhos, mas, espiritualmente, divinamente, esses muitos abrolhos que nos atormentam, ao fim e ao cabo, são eles que devem desvalorizar  aquela única pérola. Se a lei do sofrimento é a grande lei de toda a Humanidade, a que nem sequer Jesus Cristo se quis eximir, o que nos faz sofrer é mais nobre e valioso que o que nos dá prazer.

77 - Em todos os textos de formação espiritual se diz que devemos ser amáveis, fraternos, amorosos, pois na medida em que semearmos receberemos. Será? Globalmente, sim, pontualmente não, e grande parte das decepções, frustrações e desgostos resultam disso. Que bom que seria se cada amabilidade fosse paga com outra amabilidade! Que bom que seria se não houvesse amores não retribuídos! Quantas vezes sucede que aqueles que mais nos devem em atenções e favores são exactamente os que até nos desprezam! 

Quando medito nisto, muitas vezes me lembro duma banda desenhada de antigamente: o Ferdinand viu em algures o reclame de certo perfume que fazia atrair aos homens todas as mulheres e via-se, mesmo, na gravura desse reclame, duas ou três mulheres a acariciar um homem que o tinha comprado. Ferdinand ficou entusiasmadíssimo, e vai daí, comprou também o tal perfume. A seguir, veio a sua grande decepção: num autocarro cheio de mulheres, nenhuma delas se acercou dele a acaricia-lo conforme faziam as da gravura do anúncio. O Ferdinand estava convencido de que uma boa acção tem, neste mundo e sempre, a sua recompensa e não sabia que os nossos perfumes há mesmo muitos que não os apreciam.

Eu sei bem disso, mas mesmo assim, na minha vida tenho muitas vezes ficado tão nesciamente desapontado como o Ferdinand. Quando semearmos cem pérolas, o mais provável é colhermos apenas uma entre os noventa e nove abrolhos que desabrocharam. Humanamente, aquela pérola deve desvalorizar os abrolhos, mas, espiritualmente, divinamente, esses muitos abrolhos que nos atormentam, ao fim e ao cabo, são eles que devem desvalorizar  aquela única pérola. Se a lei do sofrimento é a grande lei de toda a Humanidade, a que nem sequer Jesus Cristo se quis eximir, o que nos faz sofrer é mais nobre e valioso que o que nos dá prazer.

 

GRANDE SABEDORIA OU BOA MORAL?

 

De certa vez um rapazinho de nove ou dez anos foi dar um passeio com uma sua tia, em visita a uma amiga desta. À despedida, foram a um café, onde havia vários jornais e revistas para os clientes se distraírem.

As mulheres ficaram sempre a conversar, mas o rapaz pegou numa das revistas e pôs-se a ler. A certa altura a que não era tia, perguntou-lhe afavelmente:

- Então, Ruizinho, que é que se diz nessa revista?

- Diz que você é uma ignorante – respondeu o rapaz.

Na verdade, ele sabia que aquela mulher, amiga da tia, era analfabeta, tal como eu, mais tarde vim a saber, a sua tia o era. A mulher sorriu embaraçada, disse algumas palavras incomodadas a disfarçar. O rapaz continuou a ler, as mulheres continuaram a conversar, e o incidente ficou por ali.

 

Eu era quatro ou cinco anos mais velho que o rapaz, e, embora agora pense que, por timidez e princípios, não era capaz de dar uma resposta daquelas, quando ouvi aquela frase, de característica tão sentenciosa, até a achei brilhante e apropriada. Depois, falando nisso por acaso ao dono do café, meu vizinho, ele também achou que o rapaz tinha tido um protagonismo e sabedoria de adulto. Foram precisos muitos anos para eu concluir que eu e o meu amigo e vizinho, estávamos vergonhosamente em erro.

 

O rapaz já não se considerava ignorante, pelo simples facto de saber ler, mas ainda não sabia que para não se ser verdadeiramente ignorante, é preciso saber que não se deve chamar ignorante a quem o é, principalmente ele, um imberbe, a uma mulher que podia ser sua mãe, e no assunto de ignorância não era nada inferior à sua tia. Quanto a mim, essa sua tia foi a mais ignorante, pois não teve a sabedoria de, ali mesmo e na hora, lhe dar uma reprimenda pelo dito, a mostrar-lhe que, acima de tudo, foi uma falta de educação.

Paradoxalmente, a menos ignorante de todos foi a mulher a quem o Ruizinho chamou ignorante, pelo simples facto de não ter ripostado com azedume, limitando-se a disfarçar com umas palavras, em tom alegre e jocosamente. Eu e o meu vizinho, também fomos ignorantes, por não sabermos que não ser ignorante não é só saber ler e escrever bem, e ter outras sabedorias aprendidas na escola; é também ser educado e delicado, para não ofender ninguém, especialmente nas dificuldades e incapacidades que ele possa ter. Chamar “cegueta” a quem não usa óculos e parece ver bem, não é grande ofensa; chamar “cegueta” a quem a quem é fortemente míope, é ofensa que o magoa mais que a sua miopia e mais do que se lhe chamassem ignorante.

laurindo.barbosa@gmail.com 

publicado por Fri-luso às 09:31

Laurentino Sabrosa
pesquisar
 
subscrever feeds